REQUALIFICAÇÃO DO SÍTIO ROBERTO BURLE MARX
O projeto priorizou três frentes: arquitetônica, museológica e institucional, com destaque para a difusão do legado do paisagista e a experiência de visitação;
Com 407 mil metros quadrados e uma coleção de mais de 3.500 espécies de plantas tropicais e subtropicais, o Sítio, situado na zona oeste do Rio de Janeiro, é candidato ao título de Patrimônio Mundial pela UNESCO.
Vista aérea parcial do Sítio Roberto Burle Marx, que ganha nova expografia, com recursos sonoros e de acessibilidade (Foto: Marlon da Costa Souza)
O Sítio Roberto Burle Marx – Unidade Especial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – comemora a conclusão de seu projeto de requalificação, no valor de R$ 5,4 milhões, realizado com o objetivo de valorizar os locais de visitação, melhorar as instalações de trabalho, aperfeiçoar as condições de acessibilidade, potencializar as ações de pesquisa e educação e ampliar o acesso público à obra de Roberto Burle Marx.
Localizado em Barra de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, esse espaço singular dispõe de um acervo botânico único, além de pinturas, gravuras, móveis, cerâmicas, tapeçarias, murais, painéis de azulejos, obras de artistas consagrados e do próprio paisagista, todos itens de sua coleção particular.
O trabalho de requalificação realizado pelo Intermuseus realça a grandeza do patrimônio preservado pelo Sítio e a sua importância como lugar de memória, repositório ímpar das múltiplas dimensões da vida e obra do paisagista. Segundo o Iphan, a propriedade é exemplo para o planeta de um espaço em que o estudo e a experiência paisagística da flora e da fito-ecologia tropical serviram de base para um intercâmbio de valores humanos que influenciaram a direção da modernidade e a visão de paisagismo no Brasil e no mundo.
O conjunto arquitetônico do Sítio reúne oito edificações, entre elas a casa onde viveu Burle Marx, a Capela de Santo Antônio da Bica, a Cozinha de Pedra (salão de festas), a Loggia (local para pintura e serigrafia), a Casa de Pedra e o Ateliê, além de sombrais (viveiros de plantas), lagos e jardins (Foto: Oscar Liberal)
Nascido em 1909 em São Paulo e criado no Rio de Janeiro, onde faleceu em 1994, Burle Marx se tornou conhecido internacionalmente como um dos paisagistas mais relevantes do século XX. Criou o conceito de jardim tropical moderno, promovendo uma mudança de paradigma no paisagismo mundial, baseado em formas modernas e no uso de plantas tropicais e subtropicais, rompendo com a tradição de jardins clássicos e românticos do século XIX e início do XX.
Com milhares de projetos espalhados pelo mundo, Burle Marx concebeu paisagens de grande destaque no país, como os jardins do Complexo da Pampulha, em 1942; o jardim do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1954; o paisagismo do Parque Brigadeiro Eduardo Gomes (Aterro do Flamengo), em 1961; os jardins e a grande tapeçaria do Salão de Banquetes do Palácio Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, em 1962; e o famoso traçado do “calçadão” de Copacabana, em 1970.
Burle Marx foi também artista plástico, pintor, escultor, designer de joias, figurinista, cenógrafo, ceramista e tapeceiro. Todas essas facetas do artista podem ser apreciadas na propriedade que foi para ele um grande laboratório de experimentações botânicas e artísticas, onde morou e produziu em seus últimos vinte anos de vida.
Os trabalhos para requalificação começaram em outubro de 2018 e são fruto de um projeto idealizado e realizado pelo Intermuseus, com apoio financeiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por meio da Lei de Incentivo à Cultura e parceria com o Sítio Roberto Burle Marx/IPHAN.
Acervo reúne peças de autoria de Burle Marx, arte pré-colombiana e arte popular brasileira (Foto: Oscar Liberal)
Requalificação museológica
Acervo reúne peças de autoria de Burle Marx, arte pré-colombiana e arte popular brasileira (Foto: Oscar Liberal)
Toda a área de visitação do Sítio foi qualificada do ponto de vista museológico, incluindo um novo sistema de sinalização desde a chegada do visitante ao local, com a criação de um espaço receptivo que apresenta o artista e o Sítio em seu contexto histórico e o prepara para compreender Burle Marx em toda sua complexidade, considerando sua relevância no cenário internacional da arquitetura paisagística. Os recursos estendem-se aos jardins e aos vários ambientes de sua casa, sede da propriedade.
O novo percurso agora abrange o interior da residência, dando acesso aos diversos ambientes: a sala de jantar, a sala de visitas, a sala de música, onde fica o piano de cauda da mãe do artista, a sala das cerâmicas, que guarda boa parte da coleção de arte popular, o quarto de Burle Marx, o quarto de hóspedes e a cozinha. Para a experiência ficar ainda mais imersiva, o trajeto ganhou nova iluminação, recursos visuais e efeitos sonoros. Agora também é possível contemplar de perto quadros e fotos de família, assim como as coleções do paisagista, que incluem arte cusquenha, pré-colombiana, sacra e popular brasileira.
Parte importante da requalificação também é o processo continuado de formação dos educadores, envolvendo especialistas em patrimônio e mediação cultural. Destaque também para atividades educativas de preparo e sedimentação de visitas.
Todo esse conteúdo, que apresenta o Sítio em suas características únicas, compõe o livro Sítio Roberto Burle Marx, mais uma entrega do projeto. A publicação, com 309 páginas, será distribuída gratuitamente a bibliotecas, museus e universidades. Um guia multimídia no formato de aplicativo, com roteiros em português, inglês e espanhol, em audiodescrição e em Libras, é mais uma das novidades do projeto. Os recursos de acessibilidade incluem, ainda, mapas e maquetes táteis e réplicas 3D de obras para manuseio.
Acervo online e catálogo raisonnée
O universo das obras de Burle Marx é composto por três grandes núcleos: o acervo do Sítio Roberto Burle Marx; a coleção do Instituto Burle Marx e um terceiro das obras de coleções públicas e privadas, dispersas pelo Brasil e exterior.
O Sítio, especificamente, conta com um acervo constituído por cerca de 1.700 peças de autoria de Burle Marx e passou por um minucioso trabalho de inventário, catalogação e registro fotográfico. O conjunto inclui pinturas, desenhos, gravuras, projetos paisagísticos, esculturas, painéis, lustres, peças em vidro e outras obras. Também nos temas é bastante diversificado, mas há uma predominância das composições abstratas em sua produção, reflexo do entrecruzamento de seus trabalhos no paisagismo e nas artes visuais.
No processo de requalificação, as obras foram digitalizadas em um banco de dados específico para registro, gestão, pesquisa e acesso público. Além de cumprir com o objetivo de divulgar e disseminar o conhecimento sobre o artista, o resultado deste trabalho possibilita uma gestão melhor desta coleção pela equipe de técnicos do Sítio, facilitando os processos de empréstimo para exposições e sua preservação propriamente dita.
Este trabalho foi estruturado também com vistas à contribuição para a constituição de um catálogo raisonnée do artista, projeto que poderá ter continuidade com a catalogação do acervo do Instituto Burle Marx. O Instituto Burle Marx (www.institutoburlemarx.org) é uma organização da sociedade civil que atua em projetos de parceria com algumas organizações como o Sítio Roberto Burle Marx e é responsável por um acervo de mais de 120 mil itens relativos à produção paisagística (desenhos, fotografias, plantas de projeto, croquis de estudo, maquetes, documentos, cartas e obras de arte) salvaguardados por Haruyoshi Ono durante sua gestão do Escritório de Paisagismo Burle Marx. Assim como o Sítio, o Instituto Burle Marx tem o objetivo de reverberar o legado, garantido a preservação e disponibilização desta coleção por meio de seu inventário, catalogação e futura digitalização, possibilitando o uso dos conteúdos em iniciativas de educação, cultura e meio ambiente.
Com esta frente do projeto de Requalificação, cumpre-se o propósito de reunir a memória e obra desse artista múltiplo, dando a ele o seu merecido reconhecimento na história da arte e no paisagismo mundial.
As atividades da requalificação voltadas a aspectos estruturais do Sítio compreenderam a elaboração de diversos projetos arquitetônicos, iniciando por um Plano Diretor destinado a organizar as intervenções futuras no espaço, de forma coerente com os conceitos de sua nova musealização e do seu planejamento estratégico.
Foi realizado um Plano Diretor e um detalhado estudo arquitetônico, que resguarda sua vocação como local de intercâmbio de valores humanos e de representação do pioneirismo de Burle Marx na preservação ambiental. A partir dele, foram elaborados projetos de reforma e construção, incluindo um novo prédio, que contemplará espaços específicos para o desenvolvimento de pesquisa botânica, com herbário e laboratórios, salas de trabalho, auditório equipado para cursos e palestras e outros ambientes de suporte às atividades cotidianas do Sítio, como refeitório, vestiários e almoxarifados.
Foram também projetados uma nova guarita e um Centro de Interpretação, com espaço maior para recepção de visitantes, além da reforma do Edifício da Administração, que ganhará nova área de biblioteca, salas de trabalho e reunião, espaço para o setor educativo, sala multiuso, loja e café. Com os projetos executivos e complementares que estão finalizados, o Sítio poderá planejar a execução de obras em fases futuras.
Jardim da propriedade, que foi doada pelo arquiteto e paisagista ao Iphan em 1985 (Foto: Oscar Liberal)
Articulação social, comunicação, educação e turismo
A fim de identificar potencialidades e promover maiores vínculos do Sítio com a população de Barra de Guaratiba, foi realizada uma pesquisa territorial para engajamento da comunidade. Também foi feito levantamento quantitativo e qualitativo com a população do entorno para subsidiar o Sítio na criação de programas educativos e voltados à comunidade. A ação considerou a percepção dos funcionários - muitos formados pelo próprio Burle Marx.
Foi criado, por exemplo, um documento de identificação que concede aos moradores do entorno entrada gratuita. “Queremos que a equipe e toda a comunidade se apropriem desse espaço, divulguem e participem ativamente das atividades”, conta Claudia Storino, diretora do Sítio Roberto Burle Marx. As visitas mediadas foram redesenhadas, porém, em virtude, da pandemia, a data de retomada ainda está sendo avaliada.
A ideia é que as novas atrações e melhorias tenham impacto no turismo local, que sustenta dois polos de desenvolvimento do município: o gastronômico e o de plantas. “O próprio Burle Marx tinha uma relação forte com a comunidade do entorno. Um exemplo é o polo de plantas, que se originou de seu trabalho na região", comenta Andréa Bueno Buoro, diretora do Intermuseus, organização responsável pela concepção e gestão do projeto de requalificação.
O bairro onde está localizada a propriedade, a Barra de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, é um reduto gastronômico e ecológico, a 50 km do centro da cidade. A região reúne praias selvagens (como as praias dos Búzios, das Conchas, do Perigoso, do Meio, Funda e do Inferno), trilhas (como a da Pedra do Telégrafo ou da Pedra da Tartaruga), mirantes, locais de esportes ao ar livre (rapel e stand up paddle, por exemplo), além de restaurantes, opções de hospedagem e um antigo alambique da cidade.
Patrimônio cultural da humanidade
O Sítio Roberto Burle Marx é tombado como patrimônio cultural brasileiro nas esferas municipal, estadual e federal. É um forte candidato ao título de Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO, decisão que será anunciada na 44ª reunião do Comitê do Patrimônio Mundial, ainda sem data para ocorrer devido à pandemia. Seu dossiê de candidatura, desenvolvido pelo Iphan, defende o valor universal excepcional do imóvel, na perspectiva de sua utilização como laboratório botânico e paisagístico, essencial para a criação do conceito de jardim tropical moderno.
O projeto de requalificação contribuiu fortemente com a candidatura do Sítio ao título de patrimônio mundial, colaborando com o processo continuado de qualificação de suas atividades e de sua sustentabilidade. Uma especialista da UNESCO visitou a propriedade, conferiu algumas das frentes em andamento e tomou conhecimento dos ganhos sociais, institucionais, arquitetônicos e museológicos conquistados com as intervenções.
A possível declaração como patrimônio mundial representa o reconhecimento da importância do Sítio Roberto Burle Marx para a humanidade.
História
Originalmente chamado Santo Antônio da Bica, por conta de uma fonte d’água ali localizada e que abastecia a população local, o imóvel foi comprado em 1949 por Roberto e seu irmão Guilherme Siegfried, com a finalidade de abrigar sua coleção botânica, testar novas associações e cultivar mudas. A propriedade foi gradualmente se transformando; a Capela de Santo Antônio da Bica foi restaurada na década de 1970, com o apoio dos arquitetos Lúcio Costa e Carlos Leão; foi novamente restaurada em 2019-20, pelo Sítio Roberto Burle Marx/Iphan.
Burle Marx viveu no Sítio entre 1973 e 1994, reunindo exemplares de mais de 3.500 espécies de plantas tropicais e subtropicais de diversas partes do mundo, algumas em risco de extinção. O Sítio dispõe de exemplares das 34 espécies que possuem uma relação direta com Burle Marx: duas delas descritas diretamente pelo paisagista, 16 nomeadas em homenagem a ele e outras 16 que foram descritas utilizando materiais coletados nas expedições realizadas por ele.
Uma das oito edificações do Sítio, a Capela de Santo Antônio da Bica foi erguida antes de 1681, por ordem do capitão-mor Belchior da Fonseca Dórea; foi saqueada no dia 11 de setembro de 1710, assim como a fazenda, por corsários franceses. Os invasores entraram no Rio de Janeiro pela Barra de Guaratiba, sob o comando de Jean François Duclerc, e conseguiram chegar até o centro da cidade, onde foram vencidos. Conforme relato do Monsenhor José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, a Capela achava-se arruinada em 1743 e “estando só com alicerces, foi reedificada pelo falecido Cap. Francisco de Macedo Freire no ano de 1791”. É nessa localidade histórica que se celebra, no dia 13 de junho, a festa de Santo Antônio, padroeiro da comunidade de Barra de Guaratiba, além de missas dominicais, casamentos e batizados.
Essas são apenas algumas das memórias da propriedade, que são valorizadas com a requalificação.